Iruya é uma pequena vila na província de Salta entre as montanhas coloridas do norte da Argentina. Mesmo remota, Iruya serve de referência para pueblos menores e bairros distantes, como o que Palmira cresceu.
Antes de mudar-se, ela tinha que caminhar quase duas horas para chegar na escola dos filhos, que dormiam cansados na aula até a hora da volta, ainda mais dura. Palmira fechou apertado seu casaco contra o peito e disse: “Subíamos a montanha com frio, vento e muitas vezes neve.”
Para mudar essa realidade, ela e seu marido sairam do interior com o dinheiro para um lote em Iruya. Juntos construíram o primeiro piso da casa, que se transformou em alojamento para os novos professores da escola. Eventualmente, eles foram embora.
Decidiram então colocar camas para receber futuros viajantes, que realmente vieram. A cada cama extra, Palmira ajudava seus filhos a caminharem mais longe. Seu segundo piso só acabou quando seus filhos se formaram na universidade. “Cada turista é uma benção,” agradeceu Palmira.
Fui a Iruya conversar com outra mulher, Pachamama e esperava que Palmira, por viver entre as montanhas, me desse uma luz. Então logo perguntei sobre a relação das duas.
“Eu cresci acreditando em Pachamama, e também no pai sol, Tata Inti.” Antes de se tornar evangélica e hoje, frequentar a Igreja Pentecostal.
“Agora que deus nos abriu os olhos, vemos que tudo vêm do nosso pai celestial. Ele é o universo e depois estamos nós, aqui. Não é que deixamos a terra de lado, estamos sentados sobre a terra, mas é pelo poder de deus que o sai o sol e que amanhece. Damos graças. Agradecemos por que Deus existe.”
Engoli seco e improvisei uma próxima pergunta. A conversa claramente não ajudaria minha busca. Falei então sobre o Río Grande. Naquele inverno que cheguei em Iruya, seu largo leito de poemas e canções havia se transformado em trilha.
Palmira me esclareceu uma questão fundamental sobre todo o vale que me acompanhava desde muito longe. O nome “Río Grande” não é sinônimo de caudaloso, e sim, de faminto e inteligente.
“Quem vê esse vale tão largo imagina muita água, mas na verdade não é assim. Depois de meia hora de chuva, um riacho se forma e serpenteia. Por vezes come a montanha de um lado e por vezes, come a montanha do outro” contou Palmira.
Visitar Iruya é simplesmente um gesto de boa vontade da natureza.
O próximo tema foi o Carnaval del Diablo, um carnaval onde um boneco em forma de diabo, que representa o sol, é desenterrado. A partir desse momento, a loucura é liberada em todo o norte da Argentina. Perguntei sobre alguma história ou lenda da comemoração.
Palmira pensou alguns segundos até que seu rosto mudou. “Te cuento una verdad, no un cuento”, disse séria. A tal história real começava mais ou menos assim:
Estavam todos bebendo e carnavaleando, como se faz na região, em cima de um morro, pra lá de Iruya. O dia foi chegando ao fim e sem ele, ventos estranhamente fortes acompanhados por latidos frenéticos apavoraram os foliões, que começaram a correr. Todos se esconderam em uma casa abandonada, de onde muitos deles juram ter visto um vulto negro.
As ladradas passaram de ensurdecedoras para imaginárias, pois quando saíram, os cães estavam em pedaços. “Sorte das crianças que se esconderam”, disse Palmira. Caso contrário, teriam o mesmo destino.
O carnaval daquele ano foi cancelado. A lenda, que sobreviveu aos anos, conta que a criatura ainda tinha os calcanhares para frente, como nosso Curupira.
“É tudo fruto da crença” assumiu rápido Palmira.
Ela admite que naquela região “as coisas se manifestam”, mas só para quem acredita. Durante o carnaval, além de acreditar, o diabo é adorado em Iruya.
“Eu dou graças a deus que você não crê nessas coisas, certo?” disse Palmira enquanto atendia seu telefone que não parava de tocar.
Agradeci muito por todos os contos, histórias e verdades. Mas não soube responder a única pergunta que Palmira me fez.