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Como surgiram os pajés, uma história do Curva de Vento

Tempo de leitura: 2 minutos
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Foto: André Rodrigo Pacheco

Conheci Vinícius no começo da viagem, em uma tarde longa.

Voltava ao camping para acabar meu trabalho quando o vi, finalizando com suas frases, as plaquinhas que eu separei para escrever outras coisas. Afronta pequena, admito. Mas pensei ter conhecido um cara pouco confuso e um tanto esperto. Não encontrei o Vinícius novamente pois da segunda vez, ele me foi apresentado como Curva. Curva de Vento.

Nessa ocasião já não eramos mais pintores, sim guerreiros. Ele coordenava a Aldeia Multiétnica e eu era da equipe voluntária. O Curva é amigo dos índios, dos animais e das plantas. Trabalhou dia e noite por essa nossa causa comum além de ajudar a todos, desde limpeza de espírito até tapa na orelha.
Ganhou meu apreço e no fim da semana mudamos de novo para deixar estar. Cumpadre e cumadre foi como pude admirar uma de suas histórias ao fogo. Ele Curva e ela, parábola.

Em um povo antigo de tempos distantes, havia um índio. Esse índio cuidou com muito carinho de uma pequena ave que apareceu na aldeia. Para isso, desobedeceu todas as ordens de seu pai durante anos. A ave que cresceu revelou ser a majestosa Águia Real e em agradecimento, levou o índio em suas asas até seu próprio reino. Lá ele foi bem recebido e foi presenteado com uma preciosa capa de penas, que serviria para voar para todos os lugares, menos para o sul. O sul era proibido.

O índio voou para o norte, onde aprendeu sobre as plantas e os animais. Voou para o leste, onde aprendeu sobre a água e as pedras. Voou para o oeste, onde aprendeu sobre o fogo e o ar até ter visto tudo. Assim decidiu que iria para o sul. Sua chegada foi comemorada com uma festa regada a muito vinho, música e mulheres. Todos dançaram a noite toda até que o índio satisfeito deitou e dormiu.

No meio da noite, um vento gelado correu sua espinha. Abriu seus olhos desacreditado e viu que todas as cores haviam se transformado em cinza e seus amigos, em esqueletos sem alma. O índio começou a correr e escutou um barulho de tecido rasgando. Mais tarde e mais longe, percebeu que sua capa havia ficado com os esqueletos. Sentou-se aos pés de uma árvore pensando na longa caminhada que enfrentaria até uma menina, que morava em uma casinha logo alí, aparecer. O pai dela também voou muito em sua vida, mas já estava em casa. Emprestou então ao índio sua antiga capa de penas empoeirada. Era um mistério se ela aguentaria tal viagem, mas era também a única esperança.

Depois de longa pausa para uma cusparada de xanduca, o Curva voltou-se à roda, colocando mais fogo em seu cachimbo. Tempo suficiente para algumas pessoas pedirem pela continuação, parte que eu tentava imaginar.

“Ah, sim, claro” disse Curva, o menino aceitou. Agradeceu o presente, vestiu a velha capa e voou para sua aldeia. Chegou lá inteiro, diferente da capa. Pegou as penas caídas e arrumou-as em sua cabeça, reverenciando seus antepassados. Como o tempo em sua viagem passou diferente, seus parentes haviam envelhecido. Começou então a aplicar seus conhecimentos para quem precisasse de ajuda. E assim surgiram os pajés.

Índios, voluntários e viventes bateram fortes palmas e eu nem percebi quando elas acabaram, estava voando com uma capa nova.

 

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Raquel Cintra Pryzant
Raquel Cintra Pryzant
Raquel Pryzant, jornalista de viagem brasileira vivendo em Barcelona.