Janaína, tal qual onça em selva de pedra, chegou na hora marcada, em passos silenciosos e com olhar atento. O encontro aconteceu em seu Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo. Ela cumprimentou a todos na sala sem distinção e ofereceu uma bebida gelada para aquela noite quente paulistana. Em seu gesto, não havia espaço para formalidades excessivas ou hierarquias.
Antes de gravar qualquer coisa, sentamos à mesa e ela perguntou a minha história. Estava lá para entrevistar, mas também fui entrevistada. Em poucos minutos de conversa sobre viagens por alguns estados do Brasil, a chef sorriu e contou algumas de suas últimas experiências, além de seu sonho de conhecer o Jalapão.
“Então podemos começar.”
Janaína Torres, a nossa “dona onça”, foi eleita a Melhor Chef do Mundo em 2024 pelo prêmio The World’s 50 Best. Antes disso, no ano anterior, a Melhor Chef da América Latina — o que, para ela, já havia sido um grande marco. “Eu já era muito feliz com o Brasil. E aí, comecei a me apaixonar por toda a América Latina”, conta. A chef fala com orgulho de suas raízes e da importância de ter sido celebrada primeiro aqui. “É muito raro você ser reconhecida no seu país antes de ser reconhecida internacionalmente. Isso foi muito importante para mim”.
Janaína Torres/Foto: Marcus Steinmeyer
Nascida e criada no centro de São Paulo, Janaína lembra do cheiro das comidas italianas, espanholas e africanas que saíam dos cortiços do Brás, assim como da panela de pressão de sua casa, que mais tarde viria a ser sua grande aliada. “Fui criada por mulheres fortes, que foram minhas grandes inspirações”, conta. Sua avó transformava poucos ingredientes em banquetes, e sua mãe trabalhou em casas como a “Hippopotamus”, onde conheceu chefs e cozinheiros badalados. Essas influências, somadas à resiliência que aprendeu com elas, foram fundamentais para moldar sua trajetória.
Foi essa força que a levou a começar sua carreira vendendo sanduíches e iogurtes naturais em barracas na Praça da República. Aos poucos, foi construindo uma identidade culinária enraizada na comida cotidiana, nas tradições familiares e na riqueza dos ingredientes brasileiros. Quando abriu o Bar da Dona Onça, em 2008, no Copan, seu trabalho chamou a atenção de revistas e jornais, que rapidamente a colocaram no mapa da gastronomia nacional.
Os prêmios não paravam de chegar: “Melhor Bar”, “Melhor Feijoada” e “Melhor Comida de Bar” por revistas especializadas. “Aquilo me chamou muita atenção, porque era uma mulher à frente da cozinha”, conta. Além dos mais recentes como o American Express Icon Awards, que celebra cozinheiros que promovem mudanças positivas, seguido pelo reconhecimento de Melhor da América Latina e, agora, do mundo.
O Bar da Dona Onça fica no Copan, no Centro de São Paulo
Com o braço coberto com as pintas da onça, Janaína comanda dois restaurantes que ajudam a iluminar o centro de São Paulo: o Bar da Dona Onça, que agora serve também menu degustação, e o Merenda da Cidade. Além disso, é sócia da premiada Casa do Porco, da Sorveteria do Centro e do Hot Pork.
Mas sua visão vai além dos negócios. Para Janaína, a cozinha é um palco de transformação social. “A comida é uma forma de conectar pessoas, de contar histórias, de preservar memórias”, diz. Seus restaurantes não são apenas lugares para comer, mas espaços onde a cultura brasileira é celebrada e compartilhada.
Projeto Cozinheiros pela Educação/Foto: Rogério Gomes
Para a “chef da panela de pressão”, o Brasil é um país único no mundo quando o assunto é diversidade alimentar. “Não existe nenhum outro país que faça comida como a gente faz. A riqueza do Brasil na questão da alimentação é incomparável”, se orgulha.
Da Amazônia ao Nordeste, do Sudeste aos Pampas, cada região traz sabores, técnicas e histórias que se entrelaçam em uma tapeçaria cultural única. “O Brasil é gigante pela própria natureza. Nada é igual ao nosso arroz, ao nosso feijão, às nossas frutas, aos nossos queijos”, compara.
Janaína destaca a importância de valorizar os pequenos produtores e combater o desperdício, causa que carrega desde a infância “Eu já passei fome. Esperei minha avó receber a aposentadoria para poder comer. Então, ver comida sendo jogada fora é muito doloroso para mim.”
Além de defender o uso de alimentos in natura, Janaína consolidou essa luta ao participar do desenvolvimento do projeto “Cozinheiros pela Educação”, que substituiu ingredientes ultraprocessados da merenda escolar por opções mais nutritivas e saudáveis.
Menu de inverno “Abrindo Caminhos” com feijões do Brasil, abobora, codeguim e verduras nativas.
A novidade da Jana, que não para, é um projeto gastronômico chamado “À Brasileira”. Mais do que um restaurante, é uma filosofia que busca difundir a arte de viver do Brasil através da comida. “À Brasileira vai ter biblioteca, venda de produtos, projetos diversos. É uma forma de levar o Brasil para o mundo”, explica.
O projeto não se limita a um cardápio ou a um espaço físico. É uma filosofia que permeia tudo o que Janaína faz: desde a escolha dos ingredientes até a forma como ela recebe seus clientes. Com uma biblioteca que reúne livros raros sobre gastronomia brasileira e uma loja que valoriza pequenos produtores, o projeto é um convite para mergulhar na alma do Brasil.
Ver essa foto no Instagram
Uma publicação compartilhada por Raquel Cintra Pryzant ✈︎ Jornalismo de Viagem (@solanomundo)
Janaína se reconhece em uma fase mais observadora, mas não menos apaixonada. “Estou no momento de me relacionar com o mundo com mais tranquilidade, sem precisar provar nada para ninguém”, diz. Sua missão, agora, é inspirar as próximas gerações a valorizarem a cultura alimentar do Brasil e da América Latina.
“Eu pretendo ser uma porta-voz melhor para o mundo, em relação àquilo que eu realmente acredito e desejo deixar para meus filhos e para todos que querem seguir essa carreira”, finaliza. Com incontáveis prêmios no currículo e um coração cheio de histórias, Janaína Torres prova que cozinhar é, acima de tudo, um ato de amor e resistência. E o mundo, agora, escuta seu rugir.