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Seu Raimundo, o Mestre Come Barro do Pará

Tempo de leitura: 4 minutos
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Sua mãe veio do Ceará para Bragança, no Pará, onde adotou Raimundo. Era uma artesã muito conhecida pela resistência de suas redes, normalmente trocadas por peixe. Ela levantava com o sol e começava a bater o algodão para fazer o fio, que era melhorado no fuso. Lá pras duas da tarde do dia seguinte a rede pronta e crua era colorida com a tintado urucum, do jenipapo e do cumatê, extraído da casca do axuazeiro.

Ela é responsável pelo nome Raimundo, mas também o apelido, Come Barro.

Certo dia chegou mais cedo em casa e encontrou Raimundo encontrou roendo a parede. Ela já estava há mais de um mês procurando a arara que estragava sua cozinha de taipa e não deixou barato.

Em sua defesa, Raimundo disse que a culpada era a chuva, que quando abraçava a poeira laranja, deixava a terra tão cheirosa, que dava gula. Começou com um pequeno torrão mas quando foi surpreendido, já estava viciado.

Além de uma peia homérica, digna dormir de bruços na rede, fez questão de entrar com ele na escola e avisar para os colegas “Esse menino aqui tá comendo barro!” Aquilo revoltou o pequeno Raimundo no começo, mas hoje, ele assina o apelido com orgulho em camisetas e capas de cd.

Ele atribui seu sucesso a episódios como esse. Acredita que a criação de hoje é muito pior que a de seu tempo, que era rígida, porém eficaz. E não era só com ele. Criança não podia abrir a porta para as visitas, tinha que chamar seu pai de senhor, não se metia no meio da ladainha e nunca encostar no tambor da Marujada. Ele desobedecia.

A Marujada de Bragança é diferente das outras festas do Brasil. Ela não tem nada a ver com o mar, mas sim com a permissão de celebrar São Benedito, o santo preto, concedida aos escravos mesmo faltando cem anos para a tal da abolição. As marujas vestem saias vermelhas, blusas brancas e o típico chapéu de armação alta, coberto por flores brancas de pena de pato e muitas fitas coloridas, ao som do retumbão.

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Raimundo era completamente apaixonado pelos ritmos e cores do Pará e conta ter descoberto sua vocação aos nove anos.

“Eu chegava perto da ladainha, via os velhos cantando e achava aquilo tão bonito que dizia: um dia vou aprender.”

Foi convidado a acompanhar a comitiva de São Benedito como tinido, a voz mais fina entre os contraltos e tenores. Com oito dias de viagem o Mestre da época adoeceu com dor de dente e Raimundo se ofereceu para responder a ladainha. Desconfiado, o cantador deu uma chance pro menino, que não errou nenhum amém.

Mas só saber não era suficiente para Raimundo, ele queria conhecer. Se matriculou na catequese e aprendeu a “significância” de cada “matre puríssima” daquele latim todo. Foi posto à prova quando seu pai mandou chamar todos os rezadores da região em sua casa numa sexta feira, para pagar uma promessa. Os ajudantes vieram, mas nenhum rezador apareceu.

Decidiu que rezaria a ladainha de seu pai mesmo assim “Rapaz, se eu botar debaixo da mesa é aqui dentro da minha casa, ninguém tem o que criticar.” Com o catecismo, que guarda até hoje, cumpriu a promessa e se tornou o novo rezador da área. Antes dos 14 anos já era “Come Barro” para todo lado e com o tempo, era o novo mestre da região.

O título foi oficializado pelas mãos de Gilberto Gil, que era ministro da cultura e Sérgio Mamberti, “aquele da novela Flor do Caribe” conta. Raimundo chegou em Brasília com a ajuda da Funarte (Fundação Nacional de Artes) e se deparou com um auditório lotado, palestras e cantores populares de todo o Brasil. Sérgio teve que perguntar “Quem aqui reza ladainha” duas vezes para Come Barro se manifestar.

Suas pernas tremiam no palco e tudo que conseguia lembrar era daquele dia em que cumpriu a promessa de seu pai sozinho. Sua trajetória lhe deu força e a ladainha saiu bem. Enquanto anotava e balançava sua cabeça para cima e para baixo, Sérgio perguntou que outro tipo de cultura ele fazia.

Come Barro respondeu a verdade, várias. “Eu canto a Marujada, a Brincadeira de Pássaro, Salve Rainha, Toada, a Folia de Santo Reis..” foi interrompido por Mamberti e atendeu seu pedido de cantar um pouco de cada. Encerrando aquele que era sua praia, o Carimbó.

Entregou o tal do medley sozinho, com um pandeiro na mão e um microfone de boca. Em 15 dias o certificado de Mestre chegou em Bragança, assinado pelo Gil. Hoje ele viaja o Brasil levando a cultura do Pará, mas também promove festas típicas na região. A sua diferença, é que em seu barracão, político não pega no microfone para pedir voto.

“A cultura é para se discutir em políticas públicas, mas a cultura é nossa. Não é só do PT nem do PMDB, PSB, a cultura é de todos.”

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Nos dias de quinta feira, Mestre Come Barro ensina tudo que sabe para os jovens, que agora são encorajados a participar. “Quando saio com uma comitiva, todo mundo já volta cantando”, afirma.  E assim, sua mesma ladainha de sempre continua aqui, quando ele for ensinar no céu.

Raquel Cintra Pryzant
Raquel Cintra Pryzant
Raquel Cintra Pryzant é editora do portal de viagem e gastronomia Sola no mundo desde 2017. Com mestrado na Espanha e experiência internacional, já colaborou com veículos como National Geographic, BBC, CNN, Skyscanner e mais