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Lamento de um guerreiro Fulni-ô
17 de agosto de 2017
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Seu Valcir mora perto do mar, uma passagem em Cabo Frio- RJ
10 de novembro de 2017

Os voluntários da XI Aldeia Multiétnica da Chapada dos Veadeiros

Tempo de leitura: 9 minutos
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Chegamos!

A tão esperada XI edição da Aldeia Multiétnica havia começado e depois do café da manhã fomos convocados para o que seria nossa primeira reunião. Sentei em uma roda e olhei atentamente para cada voluntário. Eles sabiam tanto quanto eu, o que viveríamos naquela semana, quase nada.

Nossa primeira tarefa foi limpar um imenso descampado para que os índios dançassem naquela mesma tarde. Fizemos aquela tarefa acontecer e naquele momento me senti parte de algo maior. Fui picada pelo bichinho do trabalho voluntário.

Durante os próximos minutos do dia que ficamos livres para conhecer o espaço, vi que em uma só fila de banheiro era possível reunir pessoas com pinturas, feições e línguas totalmente diferentes. Me senti como um índio na Av. Paulista

Soubemos que cada um de nós seria designado para trabalhar com um povo. Essa seleção, que seria feita pelas lideranças indígenas, demandava um posicionamento nosso: o de fileira. Momentos de tensão antecederam a primeira decisão.

Sobre a escolha do grande Líder Towê que eu começo esse post.

Gabriela, voluntária do povo Funil-ô, de Águas Belas – PE

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Como conheci a Gaby? Eu trabalhava no Camping do Encontro quando ela chegou. Não foi amor a primeira vista, os melhores nunca são.

Fiz a ficha dela como “hóspede para uma noite” e depois do jantar demos uma volta na vila. Fomos com a Lua, uma mulher nova, cheia de experiências.

Descobri nas coincidências da vida que ela era paulista e veio trabalhar na Aldeia. Decidimos que seria uma boa ideia ir para o evento juntas de carona e arrumamos nossas malas.

Já na beira da estrada saquei que esta aventura não seria rápida, um casal já estava na fila. Seus cabelos embolados não me surpreenderam nem um pouco perto do agradável Pet que os acompanhava, estavam com um rato na mochila. Olhei esbugalhada pra Gabriela e combinamos sem uma palavra de não ir na mesma carona que a família Ratatouille. Alí começou uma amizade.

Durante essa semana na aldeia esse sentimento tomou grandes proporções. Dividi com ela minhas incertezas e ela me contou sua história. Entendi por que o Towê a escolheu.

Nas noites frias eu ia visitar a Gaby na fogueira dos Funil-ô e durante o dia passavamos os mais diferentes tipos de perrengues juntas com alegria.

Ela se apaixonou naquela semana e fez da minha falta de habilidade para isso uma cena de stand up.

Um daqueles dias ela me convidou para um trabalho espiritual com o mestre do seu povo. Todas as minhas impressões foram confirmadas. Eu conquistei ao mesmo tempo uma irmã carinhosa e uma onça brava.

Naquela hora daquela noite, Gabriela eu e a Aline sentamos em cadeiras de plástico em volta do Twlynifoa e fechamos nossos olhos. Acordamos diferentes.

Aline, voluntária do povo Kariri- Xocó do baixo São Francisco – AL

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Olhei essa foto e começei a sorrir lembrando da risada da Aline. Acho que é uma boa forma de começar a escrever.

Uma mulher tem que ter qualquer coisa que chora, e assim é a Aline. Um turbilhão de emoções em uma figura delicada. Metade dela é amor e a outra vocês sabem.

“Meus meninos”. É assim que a Aline chamava os Kariris e os defendia a qualquer custo. Em retribuição, os meninos dela a enfeitaram da cabeça aos pés com suas lindas penas. Esse carinho dava pra equipe toda.

Certo dia de sol escaldante, carregávamos algumas frutas destraídas até que encontramos o Curva.

Ele estava cabisbaixo e assim pedimos o motivo daquela decepção toda.

Ele apontou para um pequeno furo, bem no fundo de um balde cuidadosamente limpo por ele, para receber 40 litros de suco. Apontou para as horas de seu trabalho perdido.

Olhei para a Aline e quando dei por mim já estavamos em uma grande guerra de água do balde inútil. Fizemos o Curva rir tanto, que ficamos famosas por isso.

Quem nos encontrou primeiro, encharcadas no meio do cerrado, foi o Shibuya. Como sempre, estava a caminho de buscar alguma coisa na cozinha para o seu povo.

André – voluntário do povo Krahô, de Itacajá – TO

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Ô meu irmãozinho.

Era assim que eu começava o dia. Café, banana e abraço do André.

Ele foi escolhido para trabalhar com o povo mais desafiador. Os Krahôs. Pouquíssimos deles falam português, tampouco são carinhosos.

A distância entre oca deles e a estrutura do evento é a mais longa e a liderança deles, a mais esquecida.

Segurando um carrinho de mão, o André fez umas 50 viagens pelo menos. O peixe os fazia lembrar que faltava sal e o sal fazia com que pedissem mais água e ad eternum.

Meu irmão estava nesse caminho muito antes da aldeia e continua nele para falar a verdade. Conversamos sobre essa sua busca e o tanto que ele tem de corajoso eu tenho de curiosa. Ele já foi do rock ao samba, do centro ao terreiro e do veneno de sapo até as mais distantes das estrelas.

Quando digo que ele continua, me refiro a nossa despedida, quando ele se assumiu viajante. Enquanto escrevo esse post da cidade ele permanece no cerrado, mas tenho a impressão que ele logo será encontrado no Tocantins, visitando seus parentes. Depois? Depois só Deus, Allah, Olorun, Guaraci, Oxalá, Jah e o Monstro do Espaguete Voador sabem.

Entre nossas lembranças mais saudosas ficou um pôr do sol na cachoeira dos couros que dividimos com mais uma voluntária, A Paty.

Patricia, voluntária do povo Guarani Mbyá -São Miguel – SC

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A Patrícia passa uma sensação de paz, assim como o povo que ela cuidou naquela semana.

Os Guaranis Mbyá tem nomes em português e eram os mais silenciosos da Aldeia. Também conhecidos como um “povo de reza”, realizaram todo tipo de cerimônia sagrada enquanto a loucura da aldeia comia solta. Um povo para poucos. Forte e poderoso.

Adoraria agora fugir do clichê “Pequena menina, grande mulher” ao descrever a Paty, mas infelizmente não será possível. Posso completar que, você provavelmente irá se confundir, se bagunçar e se apaixonar quando a conhecer.

Quem observar com atenção vai perceber também uma faísca maliciosa em seus olhos. E não, você não está maluco.

Fico devendo a explicação exata de como ela conquistou esse poder, comum das mulheres experientes, no auge de seus vinte e poucos anos.

Mas meu palpite fica entre ela ter viajado meio mundo, ser professora ou praticar yoga regularmente.

Depois daqueles ensolarados dias de Aldeia viajamos juntas para conhecer a cachoeira dos Couros, lá nos livramos das roupas e mergulhamos na água fresca. Secamos nossos pensamentos nas pedras e o que aprendi sobre liberdade e relacionamentos aquele dia seguem comigo até hoje, cicatrizados.

Os Guaranis e a Paty foram escolhidos por último. Acaso determinado.

Izabela – voluntária do povo Mebêngôkre/Kayapó – PA

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A Iza era veterana de aldeia e a única voluntária que entedia o que estava para acontecer.

Uma das mulheres mais comprometidas com a causa indígena que eu conheço.

As Kayapós, que a adotaram quase instantâneamente, são autoras das mais perfeitas das pinturas. Filas de visitantes se formavam a cada dia para receber aquela geometria sagrada na pele.

Entre as lideranças indígenas, o evento recebeu o cacique Raoni, Kayapó conhecido internacionalmente por sua luta pela Amazônia e pelos seus parentes. Com direito a documentário biográfico indicado a Oscar e tudo. Ele usa um botoque, um alargador de lábios muito grande. Estar na presença dessa figura foi emocionante para nós e para todos os índios.

Diferente dos outros voluntários, eu tive um conflito com meu povo.

Conversei com a Iza sobre isso e ela me esclareceu e me deu forças. Essa estudante de ciências sociais de Santo André tem muita propriedade em tudo que fala e é muito verdadeira com o que acredita.

Encontrei ela em São Paulo bem no meio da manifestação do povo Guarani, que reivindicava suas terras do Jaraguá. Espero a encontrar mais vezes e aprender com ela.

Thais, voluntária do povo Rikbaktsa – Cotriguaçu, MT

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O povo Rikbaktsa chegou em cima da hora no evento, em um número reduzido e se alojaram em barracas.

Vieram mais mulheres que homens, elas devem ter no máximo 1,60 e suas formas são arredondadas. Só sei que todas as vezes que elas dançavam no terreirão ou falavam ao microfone eu morria com uma vontade de abraçar, coisinhas fofas.

Dia desses, comentei com um amigo o tanto que as Rikbaktsas eram frágeis e doces. Ele riu de nervoso e disse: “Quando elas não estão comendo seringueiro são mesmo!”.

Assustou? Eu sim!

Acontece que este povo é um dos mais guerreiros e resistentes do Brasil. Aquelas baixinhas em cocares brancos representam séculos de resistência e muito sangue de guerreiro. Quer conhecer mais uma mulher doce e poderosa? Thais!

Ela chegou para a nossa primeira reunião de óculos, câmera e um quê de jornalista. Com o passar dos dias tive a oportunidade de ver uma Thais sem lentes. Que sorte.

Me contou dos seus planos de estudar fora e o quanto ela queria sair do Rio de Janeiro. No fim da viagem tive quase certeza que se tratava de uma futura moradora da Vila de São Jorge.

É bonito demais de ver como ela se entrega. Escutei seu choro, evoquei seu canto, mirei na sua dança e farejei seu espírito.

A gente não precisava de muito. Lembro de ficar ao seu lado na fogueira pra ter sua voz de pertinho, que encantava os Funil-ô.

A Thais se apaixonou. No ritmo da vida Chapada, na cultura borbulhante, no carinho das amizades, no céu estrelado e naquele amarelo do sol. Foi por todos os povos indígenas, por sua própria história, e pelo gosto da água doce.

Ah, bate uma saudade sabe?

De todas essas pessoas que me conheceram in natura, de tudo que aprendemos e de apoiar essa grande causa.

Eu sei lá no fundo que nunca foi “pra sempre”, as melhores coisas não são.

Vivemos um delicioso affair de amizade sem julgamentos e bem do lambuzado.

Pra essa gente curiosa, guerreira e viajada, uns versinhos:

Meus amigos do peito
Vou com vocês aonde for
Me levem na mala de mão
Vamos conhecer tudo
E quando a gente se encontrar
Tudo vai ser tão lindo. Novamente

Gratiluz

Raquel Cintra Pryzant
Raquel Cintra Pryzant
Raquel Cintra Pryzant é editora da CNN Brasil e editora-chefe do portal de viagem e gastronomia Sola no mundo desde 2017. Com mestrado na Espanha, e experiência internacional, já colaborou com veículos como a National Geographic, BBC, Skyscanner, FOLHA e mais